terça-feira, 22 de janeiro de 2013


Ainda sobre o amor

« Le fond de l'amour c'est de penser à quel­qu'un hors de sa présence, puis hors de propos, puis malgré la présence », écrit Hector Bianciotti rendant compte de la correspondance entre Rilke et Magda von Hattingberg.
Peut-être est-ce là le fond de l'amour. C'est sûrement le cas du transfert amoureux. La pré­sence de l'analyste est la condition nécessaire pour qu'un transfert puisse naître; mais trop de pré­sence, une présence trop affirmée, en chair et en os, et trop constante, entrave le déploiement du transfert, lui assigne une direction et une seule.
Absent présent, présent absent définit la place, la non-place de l'analyste: cette non-place sans cesse réinventée qui favorise la « correspondance » amoureuse, l'échange de lettres adressées à l'homme inconnu, à la femme lointaine.


Quand Freud écrit que l'amour de transfert ne peut pas être différencié d'un « véritable » amour, il reconnaît du même coup que tout amour est amour de transfert, non parce qu'il ne ferait qu'en répéter un autre, infantile, mais parce qu'il crée son objet, qu'il l'invente dans le double sens du mot invention : fiction et trouvaille.



J.-B. Pontalis
in En marge des jours

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Belo, intemporal, de uma sensibilidade comovente ... 

...o meu presente de Natal para todos



Colocado por Alcida Maria Morais


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Ítalo Calvino

Se numa noite de Inverno um viajante

(Começar. Foste tu que o disseste, Leitora. Mas como fixar o momento exacto em que começa uma história? Tudo começou sempre antes, a primeira linha da primeira página de todos os romances remete para alguma coisa que já aconteceu fora do livro. Ou então a verdadeira história é a que começa dez ou cem páginas mais à frente e tudo o que vem antes é só um prólogo. As vidas do indivíduos da espécie humana formam um entrecho contínuo, em que todas as tentativas de isolar um pedaço de vivido que tenha um sentido separado do resto – por exemplo, o encontro de duas pessoas que será decisivo para ambas – deve ter em conta que cada um dos dois traz consigo um tecido de factos, ambientes, outras pessoas, e que do encontro derivarão por sua vez outras histórias que irão separar-se da sua história comum).
Estais juntos na cama, Leitor e Leitora. Portanto chegou a altura de vos tratar pela segunda pessoa do plural, operação importantíssima, porque equivale a considerar-vos um único sujeito. Falo convosco, embrulhado não muito discernível debaixo do lençol todo amarfanhado. Se calhar depois vai cada um para o seu lado e a narração terá de novo de se esforçar por manobrar alternadamente a alavanca da mudança do tu feminino para o tu masculino; mas por agora, como os vossos corpos tendem a achar entre as duas peles a adesão mais pródiga de sensações, transmitir e receber vibrações e movimentos ondulados, penetrar os cheios e os vazios, como a actividade mental também é entendida no seu máximo entendimento, pode-se fazer-vos um discurso seguido que englobe ambos numa única pessoa bicípite. Aonde leva esta vossa identificação? Qual é o tema central que se repete nas vossas variações e modulações? Uma tensão concentrada para não perder nada do seu potencial, para prolongar um estado de reactividade, para aproveitar o acumular do desejo do outro para multiplicar a sua própria carga? Ou o abandono mais brando, a exploração da imensidade dos espaços a acariciar e reciprocamente carinhosos, a dissolução do ser num lago de superfície infinitamente táctil? Em ambas as situações só existis em função um do outro, mas para as tornardes possíveis, os vossos respectivos eus em vez de se anularem têm de ocupar sem resíduos todo o vácuo do espaço mental, de investir em si mesmos com os maiores lucros possíveis ou de se consumir até ao último centavo. Em resumo, o que fazeis é muito belo mas gramaticalmente não muda nada. No momento em que mais pareceis um vós Unitário, sois mais que antes dois tus separados e completos.
(Isto já agora, quando ainda estais ocupados com a presença um do outro de maneira exclusiva. Imagine-se daqui a não muito tempo, quando fantasmas por aparecer frequentarem as vossas mentes acompanhando os encontros dos vossos corpos controlados pelo hábito).
Leitora, agora és lida. O teu corpo é submetido a uma leitura sistemática, através de canais de informação tácteis, visuais, olfactivos,  e não sem nenhuma intervenção das papilas gustativas. Até o ouvido desempenha  o seu papel, atento como está aos teus arfares e às tuas vibrações. Não é só o corpo que em ti é objecto de leitura: o corpo conta enquanto parte de um conjunto de elementos complicados, nem todos visíveis e imediatos: o enevoar dos teus olhos, o riso, as palavras que dizes, a maneira de prenderes e soltares os cabelos, o modo de tomares a iniciativa e de te retraíres, e todos os sinais que estão na margem entre ti e os usos e costumes e a memoria e a pré-história, todos os códigos, todos os pobres alfabetos através dos quais um ser humano julga em certos momentos estar a ler outro ser humano.
Entretanto tu também és objecto de leitura, ó Leitor: a Leitora passa agora em resenha o teu corpo como se corresse o índice dos capítulos, ora o consulta como que tomada de curiosidades rápidas e precisas, ora se detém a interrogá-lo e deixando que lhe chegue uma resposta muda, como se cada busca parcial só lhe interessasse com vista a um reconhecimento espacial mais vasto. Ora se fixa em aspectos insignificantes, talvez pequenos defeitos estilísticos, por exemplo, a maçã de Adão proeminente ou o teu modo de enfiar a cabeça no côncavo do teu pescoço, e serve-se disso para  estabelecer uma margem de distanciamento, reserva critica ou familiaridade brincalhona; ora pelo contrario o pormenor descoberto por acaso é valorizado, por exemplo a forma do teu queixo ou uma tua especial mordidela no seu ombro, e a partir deste ponto de partida ela ganha impulso, percorre (percorreis em conjunto) páginas e páginas de alto a baixo sem saltar uma vírgula. Entretanto, na satisfação que sentes pela maneira como ela te lê, pelas citações textuais da tua objectividade física, insinua-se uma dúvida: que ela não te leia a ti uno e íntegro como és, mas te use, que use fragmentos de ti retirados do contexto para construir um partner fantasmático, que só ela conhece, na penumbra da sua semiconsciência, e o que ela está a decifrar seja este apócrifo visitante dos seus sonhos e não tu.
A leitura que os amantes fazem dos seus corpos (desse concentrado de corpo e espírito de que os amantes se servem  para irem juntos para a cama) difere da leitura das páginas escritas por não ser linear. Começa num ponto qualquer, salta, repete-se, volta atrás, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, recupera o fio, perde-se. Nela pode-se reconhecer uma direcção, o percurso para um fim, dado que tende para um clímax, e com vista a este clímax dispõe fases rítmicas, escanções métricas, recorrência de motivos. Mas o fim será mesmo o clímax? Ou a corrida para esse fim é contrariada por outro impulso que luta contra a corrente, remontando os instantes, para recuperar o tempo?
Se se quisesse representar graficamente o conjunto, cada episódio com o seu auge exigiria um modelo a três dimensões, talvez a quatro, nenhum modelo, toda a experiência é irrepetível. O aspecto em que a cópula e a leitura mais se parecem é que dentro delas se abrem tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço medíveis.
Já na improvisação confusa do primeiro encontro se lê o possível futuro de uma convivência. Hoje cada um é objecto de leitura do outro, cada um lê no outro a sua história não escrita. Amanhã, Leitor e Leitora, se estiverem juntos, se se deitarem na mesma cama como um casal assente, cada um acenderá o candeeiro na sua mesa de cabeceira e mergulhará no seu livro; duas leituras paralelas acompanharão a vinda do sono; primeiro tu e depois tu apagarão a luz; retornados de universos separados, encontrar-se-ão fugazmente no escuro onde todas as distancias se apagam, antes que os sonhos divergentes os arrastem também tu para um lado e tu para outro. Mas não brinquem com esta perspectiva de harmonia conjugal: que imagem de casal mais feliz poderiam contrapor-lhe?
C ALVINO, Ítalo, Se numa noite de Inverno um viajante, Editorial Teorema, LDA, Lisboa, 2000, pág. 182, 183,184, 185 e 186
Colocado por Alcida Maria Morais

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Quase

Mário de Sá Carneiro

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh' alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que bebi mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Colocado por Alcida Maria Morais


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Correu simples a nossa conversa durante a refeição. Foi só ao café que Ricardo principiou:


— Não pode imaginar, Lúcio, como a sua intimidade me encanta, como eu bendigo a hora em que nos encontramos. Antes de o conhecer, não lidara senão com indiferentes — criaturas vulgares que nunca me compreenderam, muito pouco que fosse. Meus pais adoravam-me. Mas, por isso exactamente, ainda menos me compreendiam, Enquanto que o meu amigo é uma alma rasgada, ampla, que tem a lucidez necessária para entrever a minha. É já muito. Desejaria que fosse mais; mas é já muito. Por isso hoje eu vou ter a coragem de confessar, pela primeira vez a alguém, a maior estranheza do meu espírito, a maior dor da minha vida…

Deteve-se um instante e, de súbito, em outro tom:

— É isto só: — disse — não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afectos — já lhe contei —, apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os meus desejos, posso realmente sentir aquilo que os provocou. A verdade, por consequência, é que as minhas próprias ternuras, nunca as senti, apenas as adivinhei. Para as sentir, isto é, para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.

"Ah! a minha dor é enorme: Todos podem ter amizades, que são o amparo de uma vida, a "razão" de uma existência inteira — amizades que nos dedicam; amizades que, sinceramente, nós retribuímos. Enquanto que eu, por mais que me esforce, nunca poderei retribuir nenhum afecto: os afectos não se materializam dentro de mim! É como se me faltasse um sentido — se fosse cego, se fosse surdo. Para mim, cerrou-se um mundo de alma. Há qualquer coisa que eu vejo, e não posso abranger; qualquer coisa que eu palpo, e não posso sentir… Sou um desgraçado… um grande desgraçado, acredite!

"Em certos momentos chego a ter nojo de mim. Escute. Isto é horrível! Em face de todas as pessoas que eu sei que deveria estimar — em face de todas as pessoas por quem adivinho ternuras — assalta-me sempre um desejo violento de as morder na boca! Quantas vezes não retraí uma ânsia de beijar os lábios de minha mãe…

"Entretanto estes desejos materiais — ainda lhe não disse tudo — não julgue que os sinto na minha carne; sinto-os na minha alma. Só com a minha alma poderia matar as minhas ânsias enternecidas. Só com a minha alma eu lograria possuir as criaturas que adivinho estimar — e assim satisfazer, isto é, retribuir-sentindo as minhas amizades.

"Eis tudo…

"Não me diga nada… não me diga nada!… Tenha dó de mim… muito dó…

Calei-me. Pelo meu cérebro ia um vendaval desfeito. Eu era alguém a cujos pés, sobre uma estrada lisa, cheia de sol e árvores, se cavasse de súbito um abismo de fogo.

Mas, após instantes, muito naturalmente, o poeta exclamou:

— Bem… Já vai sendo tempo de nos irmos embora.

E pediu a conta.

Tomamos um fiacre.

Pelo caminho, ao atravessarmos não sei que praça, chegaram-nos ao ouvido os sons de um violino de cego, estropiando uma linda ária. E Ricardo comentou:

— Ouve esta música? É a expressão da minha vida: uma partitura admirável, estragada por um horrível, por um infame executante…



Sá Carneiro, Mário de, A Confissão de Lúcio, Assírio e Alvim, Lisboa,  2004, pág 54, 55 e 56


Colocado por Alcida Maria Morais

sábado, 1 de dezembro de 2012


 Viajar? Para viajar basta existir.

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

«Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo.» Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. p - 387.

Colocado por Alcida Maria Morais

segunda-feira, 26 de novembro de 2012


Compreendi que viver é ser livre… Que ter amigos é necessário… Que lutar é manter-se vivo… Que para ser feliz basta querer… Aprendi que o tempo cura… Que a mágoa passa… Que a decepção não mata… Que hoje é o reflexo de ontem… Compreendi que podemos chorar sem derramar lágrimas… Que os verdadeiros amigos permanecem… Que a dor fortalece… Que vencer engrandece… Aprendi que sonhar não é fantasiar… Que para sorrir tem que se fazer alguém sorrir…Que a beleza não está no que vemos, e sim no que sentimos… Que o valor está na força da conquista… Compreendi que as palavras têm força… Que fazer é melhor do que falar… Que o olhar não mente… Que viver é aprender com os erros… Aprendi que tudo depende da vontade… Que o melhor é sermos nós mesmos… Que o SEGREDO da vida é VIVER !!!”

“E umas das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusivé muitas vezes é o próprio, apesar de, que nos empurra para frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi criadora de minha própria vida.”
Clarisse Lispector
Colocado por Alcida Maria Morais