Ítalo Calvino
Se numa noite de Inverno um viajante
(Começar. Foste tu que o disseste, Leitora.
Mas como fixar o momento exacto em que começa uma história? Tudo começou sempre
antes, a primeira linha da primeira página de todos os romances remete para alguma
coisa que já aconteceu fora do livro. Ou então a verdadeira história é a que
começa dez ou cem páginas mais à frente e tudo o que vem antes é só um prólogo.
As vidas do indivíduos da espécie humana formam um entrecho contínuo, em que
todas as tentativas de isolar um pedaço de vivido que tenha um sentido separado
do resto – por exemplo, o encontro de duas pessoas que será decisivo para ambas
– deve ter em conta que cada um dos dois traz consigo um tecido de factos,
ambientes, outras pessoas, e que do encontro derivarão por sua vez outras
histórias que irão separar-se da sua história comum).
Estais juntos na cama, Leitor e Leitora.
Portanto chegou a altura de vos tratar pela segunda pessoa do plural, operação
importantíssima, porque equivale a considerar-vos um único sujeito. Falo
convosco, embrulhado não muito discernível debaixo do lençol todo amarfanhado.
Se calhar depois vai cada um para o seu lado e a narração terá de novo de se
esforçar por manobrar alternadamente a alavanca da mudança do tu feminino para
o tu masculino; mas por agora, como os vossos corpos tendem a achar entre as
duas peles a adesão mais pródiga de sensações, transmitir e receber vibrações e
movimentos ondulados, penetrar os cheios e os vazios, como a actividade mental
também é entendida no seu máximo entendimento, pode-se fazer-vos um discurso
seguido que englobe ambos numa única pessoa bicípite. Aonde leva esta vossa
identificação? Qual é o tema central que se repete nas vossas variações e
modulações? Uma tensão concentrada para não perder nada do seu potencial, para
prolongar um estado de reactividade, para aproveitar o acumular do desejo do
outro para multiplicar a sua própria carga? Ou o abandono mais brando, a
exploração da imensidade dos espaços a acariciar e reciprocamente carinhosos, a
dissolução do ser num lago de superfície infinitamente táctil? Em ambas as
situações só existis em função um do outro, mas para as tornardes possíveis, os
vossos respectivos eus em vez de se anularem têm de ocupar sem resíduos todo o
vácuo do espaço mental, de investir em si mesmos com os maiores lucros
possíveis ou de se consumir até ao último centavo. Em resumo, o que fazeis é
muito belo mas gramaticalmente não muda nada. No momento em que mais pareceis
um vós Unitário, sois mais que antes dois tus separados e completos.
(Isto já agora, quando ainda estais
ocupados com a presença um do outro de maneira exclusiva. Imagine-se daqui a
não muito tempo, quando fantasmas por aparecer frequentarem as vossas mentes
acompanhando os encontros dos vossos corpos controlados pelo hábito).
Leitora, agora és lida. O teu corpo é
submetido a uma leitura sistemática, através de canais de informação tácteis,
visuais, olfactivos, e não sem
nenhuma intervenção das papilas gustativas. Até o ouvido desempenha o seu papel, atento como está aos teus
arfares e às tuas vibrações. Não é só o corpo que em ti é objecto de leitura: o
corpo conta enquanto parte de um conjunto de elementos complicados, nem todos
visíveis e imediatos: o enevoar dos teus olhos, o riso, as palavras que dizes,
a maneira de prenderes e soltares os cabelos, o modo de tomares a iniciativa e
de te retraíres, e todos os sinais que estão na margem entre ti e os usos e
costumes e a memoria e a pré-história, todos os códigos, todos os pobres
alfabetos através dos quais um ser humano julga em certos momentos estar a ler
outro ser humano.
Entretanto tu também és objecto de leitura,
ó Leitor: a Leitora passa agora em resenha o teu corpo como se corresse o
índice dos capítulos, ora o consulta como que tomada de curiosidades rápidas e
precisas, ora se detém a interrogá-lo e deixando que lhe chegue uma resposta
muda, como se cada busca parcial só lhe interessasse com vista a um
reconhecimento espacial mais vasto. Ora se fixa em aspectos insignificantes,
talvez pequenos defeitos estilísticos, por exemplo, a maçã de Adão proeminente
ou o teu modo de enfiar a cabeça no côncavo do teu pescoço, e serve-se disso
para estabelecer uma margem de
distanciamento, reserva critica ou familiaridade brincalhona; ora pelo
contrario o pormenor descoberto por acaso é valorizado, por exemplo a forma do
teu queixo ou uma tua especial mordidela no seu ombro, e a partir deste ponto
de partida ela ganha impulso, percorre (percorreis em conjunto) páginas e
páginas de alto a baixo sem saltar uma vírgula. Entretanto, na satisfação que
sentes pela maneira como ela te lê, pelas citações textuais da tua
objectividade física, insinua-se uma dúvida: que ela não te leia a ti uno e
íntegro como és, mas te use, que use fragmentos de ti retirados do contexto
para construir um partner fantasmático, que só ela conhece, na penumbra da sua
semiconsciência, e o que ela está a decifrar seja este apócrifo visitante dos
seus sonhos e não tu.
A leitura que os amantes fazem dos seus
corpos (desse concentrado de corpo e espírito de que os amantes se servem para irem juntos para a cama) difere da
leitura das páginas escritas por não ser linear. Começa num ponto qualquer,
salta, repete-se, volta atrás, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e
divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página,
recupera o fio, perde-se. Nela pode-se reconhecer uma direcção, o percurso para
um fim, dado que tende para um clímax, e com vista a este clímax dispõe fases
rítmicas, escanções métricas, recorrência de motivos. Mas o fim será mesmo o
clímax? Ou a corrida para esse fim é contrariada por outro impulso que luta
contra a corrente, remontando os instantes, para recuperar o tempo?
Se se quisesse representar graficamente o
conjunto, cada episódio com o seu auge exigiria um modelo a três dimensões,
talvez a quatro, nenhum modelo, toda a experiência é irrepetível. O aspecto em que
a cópula e a leitura mais se parecem é que dentro delas se abrem tempos e
espaços diferentes do tempo e do espaço medíveis.
Já na improvisação confusa do primeiro
encontro se lê o possível futuro de uma convivência. Hoje cada um é objecto de
leitura do outro, cada um lê no outro a sua história não escrita. Amanhã,
Leitor e Leitora, se estiverem juntos, se se deitarem na mesma cama como um
casal assente, cada um acenderá o candeeiro na sua mesa de cabeceira e
mergulhará no seu livro; duas leituras paralelas acompanharão a vinda do sono;
primeiro tu e depois tu apagarão a luz; retornados de universos separados,
encontrar-se-ão fugazmente no escuro onde todas as distancias se apagam, antes
que os sonhos divergentes os arrastem também tu para um lado e tu para outro.
Mas não brinquem com esta perspectiva de harmonia conjugal: que imagem de casal
mais feliz poderiam contrapor-lhe?
C ALVINO, Ítalo, Se numa noite de Inverno um viajante, Editorial Teorema, LDA,
Lisboa, 2000, pág. 182, 183,184, 185 e 186
Colocado por Alcida Maria Morais